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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Cartas ao meu outro eu-Capitulo 1

Fernando desperta, com  os olhos ainda sonolentos, e um copo de vidro na mesa que lhe indica uma vez mais que a noite foi longa. Mas não entregada à  bebida,nem aos prazeres mundanos.Fernando não bebe.Talvez influenciado desde muito cedo pelo seu pai, que apreciava qualquer sumo de frutas e até vegetais, mas que não suportava o cheiro do alcool, convertendo-o assim no unico homem que Fernando conheceu que não bebia ,mas passava as noites a pintar, num atelier da Rua Cidade de Cardiff, nos Anjos. Fernando lembrava-se do cheiro,das cores, das inumeras conversas do seu pai com homens que o visitavam, alguns a comprar-lhe quadros, outros simplesmente pelo prazer da conversa, da luz que emanava do atelier quando o sol batia ao meio-dia,e principalmente do pequeno estojo de óleos e pinceis que lhe haviam oferecido quando cumpriu oito anos, marcando assim o seu passo da infancia a uma idade onde supostamente ja saberia o que queria da sua vida, ou pelo menos com os óleos na mao,conseguiria decidir-se mais facilmente pela sua vocação, até então ainda duvidosa. Enquanto o progenitor se debruçava sobre uma tela de grandes dimensões e cores vivas, a musica de fundo tocava "Summer wind"de Frank Sinatra, seguido depois de Ella Fitzgerald, visto que seu pai era um admirador confesso de vozes que lhe tocavam a alma, e que segundo ele "o transportavam a um outro mundo, uma outra realidade."  Realidades diferentes era o que pintava o pai de Fernando, até altas horas da noite, já muito depois da luz do sol ter deixado de existir, e pela janela entrarem os primeiros raios de lua...Pintava um mundo novo dizia ele, nos seus quadros.Nunca fora um pintor muito conhecido do mercado internacional de arte, nem mesmo nos circuitos nacionais, embora um amigo de infancia o tenha representado varias vezes em exposições feitas num Hotel no centro de Lisboa, numa pequena Galeria onde se reunia a nata da sociedade portuguesa, junto com uma outra nata de pseudo-intelectuais que diziam serem o expoente maximo dos entendidos em Portugal. Embora sempre se tenha defendido bem, o pai de Fernando nunca quis dar um salto maior que as pernas, ter-se aventurado lá fora das fronteiras nacionais. Dizia ele que os seus quadros nao seriam nunca compreendidos por gente que nao falava a mesma lingua,embora tivesse tido a curiosidade de que um qualquer inglesos os olhasse e se dispusesse a fazer uma critica.
Mas isso era antes.
Antes de o seu pai ter sido "forçado"a abandonar o Atelier nos Anjos, e com ele o seu mundo,por culpa de um indivíduo que habitava a Cave esq., um homem alto,de ascendencia africana sempre impecavelmente vestido,ás vezes encontrava-o á entrada do predio e cumprimentava-o com um "Olá",vendo-o depois desaparecer escadas abaixo,sempre enfiado no seu traje. Até um dia que o viu sair escoltado por dois agentes da PJ até ao carro onde depois desapareceriam avenida abaixo, deixando o pai de Fernando atónito perante tal cena.Só uns dias mais tarde compreendeu o porque: o "Ministro", como o chamavam tinha burlado em varios milhares de euros o dono do edificio,estando agora o mesmo em mãos do Ministerio Publico, onde investigação atras de investigação se acabou por perder numa qualquer gaveta de um qualquer Gabinete da Policia Judiciaria, num qualquer districto de Lisboa.
 Mas isso foi há muito tempo.
 Fernando olha para o relógio e lentamente tenta despertar.O chão frio contrasta com o calor que desprende causando-lhe um escalofrio.Tratando de se recompor tenta por em ordem as imagens do dia anterior, que lhe povoam a mente.."-Quadros, tintas,cheiros...uma mulher..Quem era?" Nao se lembra, como sempre.Apenas aquele som, aquele zumbido nos ouvidos que lhe penetra na mente e o faz esquecer..mas esquecer o que?Decide nao dar mais atenção ao assunto, e por-se a trabalhar.A luz do sol entra agora mais fortemente pela unica janela onde havia estabelecido o seu espaço, o seu mundo. Era um edificio singular aquele. Desde que há sete anos atrás, quando decidiu sair de Lisboa e estabelecer-se nos Países Baixos, encontrou aquele edificio, sentiu-se atraído pela privacidade que emanava daquela construcção, construido no sec. XVII, e onde antes tinha sido uma destilaria, era agora um conjunto de dois andares, repartido por uma area comum , e onde escadas se intercalavam como num labirinto.Lembrava-lhe um pouco o famoso "Bateau -Lavoir", conjunto de ateliers tornado famoso nos finais do sec XIX, pelos grandes artistas que por ali passaram, entre eles Modigliani, Apollinaire, Juan Gris e provavelmente o mais conhecido de todos, Pablo Picasso, que por ali mesmo pintou " As meninas de Avignon" em 1907,tornando-se um ícono no mundo da Arte Moderna. Talvez por isso Fernando se tenha "apaixonado" pelo edificio, embora o facto de saber que teria só um vizinho com quem partilhar a escadaria tenha sido um factor bastante apreciado. A entrada fazia-se por uma larga escadaria até ao segundo andar, atravessando por completo a casa do vizinho, um tipo curioso proveniente das antigas colonias holandesas, e cujo trabalho era fazer parte do idealismo dos turistas, trabalhando numa das muitas coffee shops espalhadas pela cidade,mas que tinha como paixão o ballet clássico, e sendo fervoroso conhecedor da obra de Rudolf Nureyev,não era estranho ver-lhe practicar o seu ritual cada manhã,ao som de "Song of a Wayfarer"..Fernando já estava acostumado, no fundo até achava graça ao facto e se questionava se a inclinação sexual do sujeito seria a mesma que a sua, não obstante os indícios reveladores do contrário.As vezes lá o via chegar,altas horas da noite de blusão azul escuro e botas negras,imaginando que viria de mais um dia de vendas, populando a imaginação dos turistas que vem á Holanda atraídos pelo "Bairro Vermelho"de Amsterdam e a venda legal de drogas.
O facto de serem os unicos a habitar tal construção fazia do sitio um local apetecivel para Fernando poder pintar , já que embora as vezes partilhassem sons, pequenos comentarios e ocasionalmente algum que outro desvario sexual (muito por culpa das paredes que separavam ambos apartamentos, que eram tão finas que se podia ouvir com claridade o que o outro dizia), era um espaço confortavel e amplio o suficiente para cada um poder fazer a sua vida á vontade.Fernando gostava de se sentir no seu mundo, estar sozinho e ficar largas horas desligado da realidade, deslizando pelas telas como se de uma onda se tratasse.No entanto, tambem lhe reconfortava saber que do outro lado a escasos centimetros havia alguem.Gostava dessa sensação de segurança,talvez pelo facto de um dia de calor, há muitos anos atrás, tenha ido com os pais a um Centro Comercial da zona e acidentalmente ter-se fechado num dos muitos ascensores do complexo, ficando 2 horas completamente absorto e sozinho, sentindo como o ar se lhe acabava e ouvindo os gritos histericos da mãe detrás das paredes de betão.Quando finalmente o puderam libertar, vinha com os olhos inchados por haver gastado todas as lágrimas naquele dia, mas impávido e sereno como uma manhã de Verão.A actitude indiferente contrastava com a da mãe, que sentindo-se como se o seu filho tivesse voltado a vida, tal Lázaro, abraçava-o enquanto que o pai, passando-lhe a mão pela cabeça dizia,"-Nao foi nada, já passou.."

1 comentário:

  1. Grande Bruno.
    Que grande surpresa, amigo!
    Já te conhecia os dotes para a pintura; não te conhecia embrenhado nos braços de Calíope!!!!
    No entanto, grande amigo, permite-me o atrevimento de uns pequenos conselhos:
    O texto tem dinâmica, sem dúvida, mas emperra aqui e ali. Para um primeiros capítulo, sugeria que algumas das ideias passassem para o segundo capítulo, uma vez que o protagonista tem como única acção o "despertar". Mete-lhe mais umas actividades do Fernando pelo meio.
    Convém rever o texto, também.
    No geral está excelente. Gosto.

    Um abraço.
    João Batista

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